sexta-feira, novembro 10, 2006

Forwards: A praxe, a latada e o machismo anacrónico

Jornal Diário de Coimbra, 30/10/2006
Elísio Estanque

Olhando para o cartaz da Latada de 2006 da Universidade de Coimbra
podemos facilmente identificar três dos principais traços que definem
hoje o ambiente académico: a irreverência boémia, a violência
simbólica e o machismo.

Quanto ao primeiro, a cultura estudantil, o divertimento e o
ritualismo festivo constituem um campo de práticas socioculturais
constituintes da própria identidade académica e da imagem pública da
Lusa Atenas. Nada contra isso. Afinal, a irreverência, a subversão, a
boémia e os comportamentos extremos são desde sempre associados à
rebeldia da juventude estudantil. Além disso, como se sabe, o consumo
de álcool, a praxe, os excessos e a violência contra os caloiros já
são temas de polémica desde pelo menos o século XVIII. Nada disto é
novo, portanto. Porém, enquanto até aos anos sessenta esta
irreverência transportava em si uma cultura de dissensão, uma mistura
de elementos de diversão e consumos culturais de vanguarda, onde a
boémia se combinava com a consciência crítica e até com a acção
política (como durante a crise de 1969), nos dias que correm as
sociabilidades estudantis e os rituais académicos obedecem mais a uma
lógica consumista e os excessos cometidos nas festividades académicas
são, infelizmente, mais visíveis no abuso do álcool, nos
comportamentos irracionais e na violência sobre os caloiros. O lado
social e político da irreverência estudantil parecem irremediavelmente
perdidos, pelo menos no contexto das festas académicas.

Em segundo lugar, as praxes estão hoje desadequadas, pelo menos na sua
actual forma, perante a massificação da Universidade e contrariam
muitas vezes o respeito pelas regras democráticas de civilidade e o
direito à diferença. Há uma crescente consciência crítica que olha as
brincadeiras praxistas com desconfiança e aumenta o sentimento de que
elas devem adaptar-se à nova realidade académica. Num inquérito
recente, aplicado em 2005 aos estudantes de Coimbra (no âmbito de um
projecto em conclusão no Centro de Estudos Sociais), apenas cerca de
15% acham que a praxe se deve manter como está. 51,5% responderam que
a praxe deve ser revista por forma a receber melhor os novos alunos,
67,4% entendem que deve rejeitar qualquer forma de violência e 71,7%
acham que deve ser facultativa e respeitar quem não quiser aderir.
Isto mostra como a violência simbólica (e, por maioria de razão, a
física) é rejeitada pelos estudantes.

Finalmente, a questão do sexismo. Como se sabe, a cultura machista e
'viril' é típica de ambientes masculinos e celibatários, como era a
Universidade portuguesa até aos anos sessenta do século passado. Mas,
hoje, perante uma Universidade fortemente feminizada, é no mínimo
desajustada a presença desse mesmo sexismo, borguista e marialva. E no
entanto eles aparecem aqui ostensivamente em todo o seu esplendor.
Repare-se: primeiro, não há uma única mulher entre os figurantes.
Depois, note-se, os três personagens da primeira fila – os caloiros –
não apenas aparecem nas suas poses ridículas perante o gozo dos
restantes "matulões", como as vestes e adereços que usam lhes conferem
um aspecto feminino. Assim, a feminilidade é atingida de duas
maneiras: apagam completamente mais de 60% de estudantes da UC que são
raparigas, ao mesmo tempo que os alvos da chacota são rapazes
travestidos de meninas. Esta cultura de pseudo-virilidade machista
continua a ser exibida, com o seu lado violento bem visível nos
objectos de "tortura" e na pose ameaçadora dos mais velhos sobre os
mais novos.

Pergunta-se: até quando as estudantes desta universidade vão aceitar
passivamente ser excluídas e humilhadas pela cultura machista e
conservadora que continua a dominar o mundo estudantil? É tempo de um
verdadeiro movimento feminista se impor na Universidade de Coimbra.
Porque isto não é uma mera situação pontual. É apenas o reflexo de um
panorama geral em que a representação das mulheres nas estruturas
associativas dos estudantes e nos órgãos de gestão da universidade é
praticamente nula. É a presença de uma mentalidade anacrónica, que
continua a remeter o género feminino para um papel secundário ou
meramente decorativo.

comentários:

Anónimo disse...
3:35 da manhã
 

Como estudante da UC deixo as seguintes considerações:
1. Antes de mais é importante perceber o que é realmente a praxe. Reduzir um conceito tão amplo unicamente às brincadeiras com os caloiros é um erro recorrente. A praxe são todas as vivências no meio académico e a integração dos caloiros é somente uma das suas vertentes.
2. Depois é também recorrente generalizar toda e qualquer integração dos caloiros como igual, independentemente da academia e da forma como é feita. Nem é preciso sair de Coimbra para perceber isso já que mesmo noutras instituições do ensino superior da cidade existem desde logo diferenças. Por exemplo, na UC homens não podem praxar mulheres e vice-versa, os caloiros não podem ser pintados e todos os abusos podem ser denunciados ao órgão responsável pela observância das normas estipuladas no Código da Praxe (Conselho de Veteranos). Acontece que raras são as denúncias mas isso é algo que ultrapassa a própria praxe.
3. Ainda sobre os abusos, é uma questão de formação das pessoas e não defeito da praxe em si mesma. Se os "doutores da praxe" gozam os caloiros unicamente para se sentirem superiores humilhando-os, para se vingarem dos seus tempos de caloiros ou mesmo para ultrapassarem alguma frustração oculta, há que tentar mudar essas mentalidades, o que naturalmente não acontece de um dia para o outro.
4. Apesar de no meu ano de caloiro ter sido apanhado na noite por uma trupe e de consequentemente ter sido rapado, não procurei vingar-me nos anos seguintes e hoje que sou veterano continuo a só achar piada às brincadeiras com os caloiros feitas em grupo, porque só assim eles próprios se divertem e ficam com boas recordações desses tempos.
5. Como em todos os sistemas, democráticos ou não, existem defeitos e também as próprias pessoas podem ou não ser conscientes, podem ou não ser justas, podem ou não ser adultas e quem sabe se com alguma ajuda feminina nestas questões se consiga ultrapassar esses mesmos problemas.