MEGALupa: A sanidade mental dos Adeptos
Praticar futebol faz diminuir uso de medicação. Sofre de depressão, esquizofrenia ou qualquer outra doença mental? Então a solução é simples: deite fora a medicação e comece a fintar. É esta a teoria que está a aliciar o mundo da medicina desde que foi difundido, no ano passado, um controverso documentário italiano intitulado Loucos por Futebol. Esta é a história bizarra mas verdadeira de dois psiquiatras italianos que têm vindo, desde 1993, a gerir uma equipa de futebol para doentes mentais - com resultados fenomenais. Num campo de futebol poeirento nos arredores de Roma, os médicos Mauro Raffaeli e Santo Rullo descobriram que a "terapia do futebol" conseguia melhorar substancialmente o estado dos seus pacientes. Depois de jogarem regularmente na pouco convencional equipa chamada "Il Gabbiano" ("A Gaivota"), a maioria dos atletas reduziu a medicação enquanto mais de metade sentiu-se, subsequentemente, capaz de voltar ao trabalho e de se reintegrar na sociedade.
Na verdade, o sucesso de Il Gabbiano tem sido tão grande, especialmente desde que o filme passou na televisão italiana que nasceram outros 50 clubes similares por toda a Itália.
Benedetto Quirino, um lateral que joga no Il Gabbiano, apesar de ouvir vozes dentro da cabeça, explica porque é que a terapia do futebol funciona tão bem: "Quando entramos em campo, as vozes param. O nosso oponente deixa de estar dentro de nós, saiu cá para fora e podemos fazer umas fintas em redor dele e vencê-lo."
Está já estabelecido o facto de as endorfinas produzidas pelo exercício físico causarem bem-estar, mas uma vez que o futebol é um jogo de equipa com regras complexas e interacção, é também uma ajuda para a socialização, concentração e melhoramento da confiança. "A inclusão social é muito importante", diz Rullo. "Para um homem que é forçado pela doença mental a isolar-se, o futebol trá-lo de volta a um mundo de comunicação: passar a bola, gritar pela bola, ou simplesmente seguir os movimentos da sua equipa.
Ao fazer isso o jogador descobre outra vez o seu papel no campo de futebol - o primeiro passo para o tornar capaz de se relacionar fora dele."
Sem perigos
Outro dos objectivos fundamentais de Il Gabbiano é ajudar a derrubar o estigma social da doença mental. Francesco Trento, o escritor e produtor de Loucos por Futebol, joga regularmente com doentes e refuta a ideia de que haja qualquer perigo envolvido. "Durante todo o tempo em que joguei nunca vi pacientes a serem violentos. Isso é verdadeiramente significativo, pois a doença mental é sempre associada ao estigma do perigo social." Uma das razões para que o futebol seja um remédio tão eficaz é que a acção quase nunca pára e assim a mente dos jogadores não pode divagar por territórios doentios.
Na verdade, os poderes curativos do futebol são tão poderosos que nem sequer é necessário jogar para colher os seus benefícios psicológicos. Em 2005, Alan Pringle, da Escola de Enfermagem da Universidade de Nottingham, montou um esquema chamado "É Golo". A ideia era que, mudando a séria linguagem médica e o local da terapia para linguagens e locais orientados para o futebol, isso iria tornar os pacientes fãs de futebol mais confortáveis. Levou a cabo sessões de aconselhamento psiquiátrico no Mansfield Town FC e descreveu tipos de personalidades aos seus pacientes nos termos de posições de jogo. Por exemplo, os guarda-redes foram classificados como pessoas de pouca confiança com repentes de brilhantismo, enquanto os médios eram personalidades duras, que não se querem comprometer, e os atacantes eram mais do tipo solitário. Foram descritos vários cenários em termos de "passagem de bola" e "fazê-la curvar como o Beckham" e as sessões foram acompanhadas por vídeos de momentos famosos de futebol. Pode parecer charlatanice ridícula, mas alcançou resultados. Um dos frequentadores do esquema afirma: "Tive más experiências no hospital; isto está muito longe de tudo aquilo." Outro admite que normalmente se recusaria a ir ao médico mas o cenário do estádio era demasiado tentador para conseguir resistir. Sessões semelhantes têm sido levadas a cabo em White Hart Lane, casa do Tottenham, e em Old Trafford, casa do Manchester United.
A sanidade dos adeptos
Se o belo jogo consegue ter tais poderes de recuperação para aqueles que o jogam, que efeitos positivos poderá ter H se é que tem alguns - para aqueles que se limitam a assistir? O apresentador de Match of the Day 2 e adepto do West Bromwich, Adrian Chiles não está certo dos benefícios para a saúde mental de se ser um adepto. "Durante toda a época passada vivi no receio da descida mas quando finalmente aconteceu eu era um homem novo. É a esperança que nos mata", afirma ele. Tais sentimentos tocam uma corda entre aqueles de nós cujas vidas de adeptos de equipas de futebol parecem, às vezes, uma sucessão de desapontamentos, desilusões e sonhos desfeitos. Contudo, os fãs com um sofrimento prolongado ficarão aliviados ao saberem que a mente humana está inteligentemente preparada para se proteger a si própria de qualquer golpe esmagador perpetrado pela sua equipa. Todos nós conhecemos muitas aves de mau agouro entre os nossos colegas adeptos, aqueles que estão convencidos de que o colapso está nas cartas mesmo quando estamos a ganhar 4-0 a dez minutos do fim. Mas mesmo esses esperam secretamente que tudo acabe em bem, como explica o psicólogo desportivo Marc Jones. "Isso é um exemplo de um mecanismo psicologicamente positivo concebido para suavizar o golpe da possível derrota, estreitamente relacionado com o processo do pensamento conhecido como 'Cortar com o Fracasso Reflectido'. Tentam que a derrota pareça menos má e a vitória saiba ainda melhor. É, na realidade, um comportamento saudável."
Ser adepto de uma equipa de futebol exige, pela natureza da coisa, uma reserva de optimismo sem fim, por muito que se tente escondê-la, e nunca se pode ficar demasiado deprimido se ainda se tem esperança. O Santo Rullo sintetiza. "Quando perdemos, sentimo-nos em baixo durante um bocado. Mas depois começamos a pensar no próximo jogo. A vida é como o futebol: há sempre outro jogo que podemos ganhar. A vida continua."
Em campo o optimismo é ainda mais essencial. Quantas vezes estivemos do lado daqueles que tinham levado uns golos e de repente descobrimos que estavam "de cabeça caída"? Param de perseguir a bola, desistem de correr e não conseguem voltar a encarrilar no jogo. Daí resulta uma derrota total. É claro que é mais fácil ser-se optimista quando não é assim tanto o que está em jogo. Por exemplo, nos jogos entre amigos no parque, onde as pressões são menos pronunciadas, há ainda outro elemento que pode ser bom para a saúde mental: a fantasia. Por muito mal que estejamos a jogar e por muito grande que seja a derrota que a nossa equipa está a sofrer, estamos sempre a poucos segundos de um momento de antologia. Assim, há sempre luz ao fundo de qualquer túnel.
Fantasias positivas
"Há uma visão positiva comum entre os jogadores", concorda Marc Jones. "Quando os psicólogos desportivos preparam os jogadores para os jogos podem pedir-lhes para visualizar esses cenários positivos. Visualizar um bom jogo faz-nos sentir bem. A actividade cerebral quando estamos a pensar acerca de algo é semelhante à que existe quando fazemos essa coisa. Assim, todo o processo de fantasiar sobre futebol é um processo positivo." Podemos também argumentar que a fantasia também desempenha um papel nas bancadas. Quando os adeptos de um clube cantam que têm "de longe a melhor equipa que o mundo já viu", é evidente que não se estão a guiar por nenhuma medida convencional de "grandeza", mas aquilo fá-los sentirem-se melhor...
Durante os últimos dez anos, os psicólogos foram ficando cada vez mais interessados no efeito do futebol na nossa saúde mental, e identifi- caram várias outras formas com as quais o jogo pode ajudar a recompor a nossa cabeça. Segundo a Fundação para a Saúde Mental, "o futebol satisfaz a nossa necessidade psicológica de fugir às tensões e limitações da vida e entrar noutro mundo durante um determinado período de tempo". Realçam também a catarse emocional que ver o jogo proporciona. Sentimos altos e baixos intensos - aquilo a que os psicólogos chamam "experiências de picos" - durante um jogo e principalmente os homens podem extravasar sentimentos que suprimiriam em qualquer outra situação das suas vidas. Podemos também dizer o indizível; se gritarmos para um defesa que luta pela posse da bola com um atacante contrário "Mata-o já", não somos acusados de incitamento ao homicídio. Quantas pessoas que noutras situações são calmas e bem-educadas é que já viu soltarem as suas emoções uma vez fora das portas do estádio? Há também um disparo biológico a ter em conta - estudos demonstraram que os níveis de testosterona dos adeptos e dos jogadores aumentaram cerca de 30% em média com a emoção de uma vitória importante.
No seu trabalho com os adeptos do Mansfield Town, Alan Pringle descobriu também que apoiar uma equipa e assistir aos jogos dava aos adeptos um sentimento de consistência num mundo crescentemente volátil. "Enquanto a vida muda, o clube é consistente. As pessoas diziam: 'Eu trabalhava na mina. Agora isso acabou e reponho prateleiras no supermercado, mas o Mansfield continua lá. Estava lá quando em casei e quando me divorciei e a minha vida mudou dramaticamente. Mas continuo a poder ir para o mesmo lugar das bancadas onde costumava ficar'", diz Pringle
Mundial diminuiu urgências
Esses sentimentos estão intimamente ligados a outros aspectos: a identidade social e o sentido de família que o ser adepto transmite, apesar dos melhores esforços de presidentes ambiciosos para cativarem "clientes" mais ricos. Até o sentar-se no sofá e ver o jogo pode ser terapêutico. Um estudo escocês descobriu que durante e depois do Mundial de 1990 houve uma redução no número de entradas na urgência psiquiátrica.
Provou-se que ser adepto de futebol é ter também uma fonte importante de bisbilhotice, uma actividade conhecida por ser positivamente estimulante para o cérebro. Enquanto os leitores de revistas da especialidade poderão conseguir conversar imenso sobre os desastres dos penteados de Britney Spears, os adeptos de futebol podem encontrar igual quantidade de material para debate nas escolhas para a selecção inglesa por parte de Steve McClaren.
Assim, a mensagem é clara. Às vezes o futebol pode dar-nos cabo da cabeça, mas no fim está a fazer-nos muito bem à dita. E 40 ou 50 anos de sofrimento não devem nunca impedir-nos de sonhar.
Exclusivo 'FOURFOURTWO' assinado pelo jornalista Johnny Sharp e publicado em Portugal pelo Diário Notícias. Versão original por aqui.
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